Crónica de Jorge C Ferreira | Cogumelos venenosos

Cogumelos venenosos
por Jorge Ferreira

 

Ligo a televisão e vejo duas enormes explosões. Um cogumelo imenso a crescer. Uma cor meio alaranjada. Vem-me à memória Nagasaki e Hiroshima. Esse dia negro para a história do mundo. Viajo até ao holocausto. Lembro-me da visita ao campo de concentração de Buchenwald, de ter saído de lá a segurar a cabeça com as mãos e sentar-me no passeio sem querer falar com ninguém. Não entender como a natureza humana chega a níveis tão grandes de crueldade.

Afinal estamos a ver o Porto de Beirute, o Líbano. O Mare-Nostrum, o País que foi conhecido como a Suíça da Europa. Tive um companheiro na instrução primária cuja família tinha vindo do Líbano. Já não me lembro se ele tinha nascido lá. Sei que era Judeu. Soube-o através do nome e da circuncisão. Conversas de miúdos a crescerem. Morava perto de mim. Cheguei a ir a casa dele e ele à minha. Já não me lembro dos pormenores. Vivíamos muito perto. Nunca mais soube dele. Perdemo-nos.

Olho para os rodapés que correm numa barra na base do ecrã. O excesso de informação. Só leio miséria. Estes canais informativos que nos enchem de negros oráculos. Crimes e desgraças, mortes em directo. Um cansaço para a vista e para a mente. Os comentadores do regime. Alguns aldrabões. Malabaristas e vendedores da banha da cobra.

– Compre um frasquinho e leva três. Este miraculoso remédio cura tudo: calos, lombrigas, doenças de pele e todas as mais graves maleitas!

– Aproveite hoje e não diga que não o avisei.

– Um frasquinho para aquele senhor e mais dois de oferta, outro para aquela menina…

A cobra que o homem dizia que estava dentro da mala nunca aparecia.

Anda aí um novo alvoroço para alegrar a pandemia. Virá o antigo Rei de Espanha para o Estoril? A Rainha acho que já lhe disse para ir morrer longe. Mas porque é que tudo tem de vir desaguar aqui? O homem, alegadamente, recebeu dinheiro que branqueou e deu algum a uma tal Corinna. Coisas que metem a realeza, amantes, bancos Suíços, paraísos fiscais. Enfim, o que já conhecemos por cá. É mais um, e este até já viveu por cá em miúdo, e os amigos de infância andam todos por aí. As voltas que o mundo dá.

Os mortos feitos pela explosão que falámos ao início vão aumentando. Nunca saberemos ao certo quantos foram. As teorias da conspiração já proliferam. Um local perigoso este mundo. Os Barcos tremeram no Mediterrâneo Oriental. As ondas cresceram. Em Chipre ouviu-se o estrondo. Ouviam-se muitas sirenes. Há quem lhes chame sopros da morte.

Ainda nos vão querer convencer que o confinamento até é bom. Escusamos de andar aí pelo mundo sujeitos a estas coisas. A Alemanha diz que já está na segunda vaga. Não tarda nada está aí e vamos todos para casa de novo. A OMS diz que até pode não haver vacina. Que mundo vamos ter? Que vida será a nossa? Qual será a próxima invenção dos tipos que mandam no planeta.

Arrisco a dizer: As pessoas vão começar a vir para as ruas. O resto não sei.

«Dia feio hoje. Aquela explosão meteu medo.»

Fala de Isaurinda.

«Tudo está feio. Tudo a ficar escuro. Agora a destruição.»

Respondo.

«Feio, muito feio.»

De novo Isaurinda e vai, o lenço na mão fechada.

Jorge C Ferreira Agosto/2020(262)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Cogumelos venenosos”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Desabafo, chamada de atenção, comentário, tudo contido num texto que em poucas palavras reflecte quanta maldade existe e quão frágeis todos somos. Num sopro deixamos de rir para chorar — se houver tempo –, para fazer uma oração … em pensamento.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Temos de aproveitar o tempo para resistir. Já o fizemos antes. Cuide-se meu amigo. Abraço

  2. Cecília Vicente

    O mundo num caos,poder-se-à dizer que o mundo está a arder. Explosões,corrupção mundial. Dinheiros a comandar o mundo,a desfaçatez de muitos clamando inocência perante todas as provas. O Novo pior que o Velho…vendas por tuta e meia,negócios milionários …Muito e tudo me apoquenta,o vírus a surpreender,inteligente,digo eu…
    Os estarolas a desgovernar,os palhaços que os apoiam; O Mundo numa roda viva,uma feira global,a montanha russa ganhando adeptos para dar voltas e nós a toparmos…
    Que mundo este,que país meu é este que mais parece ter regressado ao obscuro escolhendo a cor que deverá prevalecer. O Sangue só tem uma cor,deveria ser e terá de ser a soma da igualdade para todos. Meu querido amigo,fica bem,eu tento,apenas tento a minha parte em ser pelo respeito e igualdade… Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Disseste tudo. Temos de continuar a ser nós. Ter respeito por nós e tentar que os outros o tenham. Resistir. Abraço muito Amigo

  3. Isabel Maria Pinto Soares Torres

    Texto muito bom. Reflecte a desumanidade e a inalterável tristeza por um passado que não devemos esquecer e um presente que devemos mudar.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim, tudo certo o que disse. Tentar mudar. Resistir. Abraço

  4. Um mal nunca vem só.
    Estes tempos, quando tudo de pior parece acontecer, são propensos à reflexão, provavelmente mais que os anteriores.
    Quando o sentido das coisas nos escapa, temos de ser criativos e, a meu ver, reerguer as emoções no devido pedestal. Um pedestal alcançável.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Que arguta foste no ditado escolhido. Estar atento e resistir. Contrariar a voragem fo tempo. Abraço

  5. Eulália Pereira Coutinho

    Feio, muito feio. Monstruoso mesmo.
    São imagens que não saem da cabeça. Autêntica bomba atómica em directo. Os escombros. O horror.
    Enquanto isso o monarca espanhol, procura um lugar seguro, para esconder o escândalo e a corrupção.
    Caem aviões. Mãos criminosas queimam as nossas florestas. O vírus continua incontrolável .
    Os loucos governam o mundo.
    Que mundo este meu amigo. Para onde caminhamos?
    Até quando é possível resistir?
    Obrigada por estar desse lado. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Descreveu como deve ser este horror que nos atormenta, para gáudio de alguns. Resistir. Abraço

  6. Mena Geraldes

    Notável, como sempre!
    A retrospectiva de quem vê para além do que é evidente.
    As notícias que deflagram como bombas.
    Os horrores, as afrontas e as misérias de um mundo virado de pernas para o ar.
    As fofoquices das revistas cor de rosa.
    O inútil. Desnecessário.
    A pandemia que tem lugar cativo.
    E a vontade de partir.

    Havia um paraíso. Que é feito dele?

    Jorge.
    Nunca compremos a banha da cobra.
    Jamais nos deixemos enredar em contos do vigário.
    Saibamos fugir a sete pés, das tramas e dos enredos que nos dão como prémio na barraca onde “é só acertar… tente a sua sorte!”
    Dia feio, hoje?
    Como serão os que estão para vir???
    A cigana lê a sina…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, a banha da cobra nuncs. Giquemos com as nossas mãos e a vontade de escrever. Vamos resistir. Abraço

  7. Regina Conde

    A tua crónica é de uma lucidez magnífica. O mundo a ficar estranho e escuro. Quem fabricou este medo mundial tem o antídoto. A crueldade constante nos telejornais. Há que vender. Os fogos em Portugal. Violência doméstica a aumentar. O mar a ficar com ondas de plástico. As festas de milhares de pessoas, futebol. Até o rei de Espanha, tudo gente boa, assunto apetecível para programas tristes. É oficial o meu medo. Temos que lhe fazer frente. Abraço muito grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Sim, minha amiga, há coisas que roçam a crueldade. Que bem descreves este nosso pobre mundo. Resistir. Abraço

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